quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Namorando a morte

Era imensa a vontade que eu tinha de me jogar, mas algo me prendia, talvez a sanidade - a pouca que me restou; era esse o diagnóstico do meu psiquiatra. Estava na ponta do pé na quina de um precipício. Excitante tanto quanto ver uma fonte jorrar água na imensidão do deserto, contudo sem poder toca-la, apenas visualizar. Estava entusiasmada com a ideia de me atirar nos braços do ar e só, e ponto. A liberdade que aquilo deveria proporcionar, ninguém teria tempo de explicar - literalmente. Eu suava frio, era meu organismo, meus sinais humanos do que o cérebro planejava fazer, era meu alerta vermelho e meu instinto de sobrevivência gritando para meus músculos que não se mexessem um centímetro a mais ou ''game over''. Eu queria chegar ao fim da linha! Seria tão mais fácil lidar com a morte se a gente quisesse morrer... E eu queria! Quer dizer, não morrer, mas provar do sabor que aquele ato inconsequente poderia me dar e se eu tivesse de pagar com a vida - ou com a perda dela -, isso pouco me importava! Afinal, já estava abusada do ''tic-tac'' sempre presente em minha rotina ou até na fuga dela! Apurei meus ouvidos, meus sentidos, fechei os olhos, esvaziei a mente e desliguei meus instintos de salvação; estava disposta a deixar fluir e fazer acontecer o que desse na telha. Ouvi o vento soprar agudo, zunia em meus ouvidos e isso não me irritava, soava uma melodia; era a Mãe se comunicando. Senti a brisa acariciar minha face ao mesmo tempo em que a castigava com chicotadas dos meus cabelos, minhas mechas estavam dançando e era gostosa a sensação de frescor tomando conta do couro cabeludo. Resolvi abrir os olhos, queria ver o prazer que a visão podia me dar, experimentar ao máximo a experiência de estar à beira de um precipício. Estava disposta a saborear o torpor máximo daquilo. Eu via as rochas ao fundo e a neblina acobertando alguns galhos secos de árvore, não tinha sequer um pássaro no céu, nem sinal do sol, apenas o céu azul tinindo e pouquíssimas nuvens se faziam aparecer, a maioria devia estar ao sul, lá o tempo costumava ser chuvoso. Não se via qualquer sinal de vida animal ou murmúrio. Ouvia-se o barulho de água chocando contra a terra, mas não vinham do mar debaixo de mim, devia haver alguma cachoeira aos arredores e isso me tranquilizava - que paz, que serenidade; aposto como o mundo seria mais feliz se todos os homens pudessem experimentar disso ao menos uma vez em suas vidas! Sei que parece loucura - que ironia eu dizer isso! -, mas eu estava cada vez mais convencida de que queria me atirar ali! O abismo me atraía, não pelas consequências de me jogar, mas pelas sensações. Era isso, eu queria sentir a morte me dominar e, pior, o prazer que ela me traria! Eu poderia chorar, rir, gritar, xingar; a decisão era minha e o fim já era certo - não me traria consequência alguma. Antes, resolvi me despedir mentalmente - óbvio que eu sabia que traria dor e relutância, mas eu era louca, não insensível - de meus pais, já vividos, mas que nunca viveriam isso, e que deram duro para me educar mas no fim: tanto trabalho para um suicídio. Minha filha, sofreria sem mim mas, uma hora ia ter de lidar com isso, agora ou amanhã não fazia diferença e ela já estava engajada no trabalho e no futuro marido... Meu esposo, já havia ultrapassado esse horizonte, mas me apeguei a lembrança de quando eramos maciços e joviais, tempo bom... Nos casamos cedo, como de costume na cidade pequena que vivemos e isso não nos atrapalhou, rendeu histórias peculiares. Meus amigos, não me despedi um a um, mas me recordei das gargalhadas e problemas habituais de inter-relações; era gostoso ter de lidar com gente, principalmente gente íntima. Lembrei de mim, de minha educação e criação, infância, adolescência - a melhor fase - e de quando abri as portas ao mundo adulto e pensei que sequer viveria para fechar essa porta; é, eu tinha 47. Pensei em como lembrariam de mim: a louca inconsequente que não soube lidar com a depressão após a morte do marido; ''pobre coitada'' seria meu novo referencial, aposto! Pobres coitados, não sabiam o êxtase que eu estava vivenciando, pouco a pouco. Despedi-me de tudo, inclusive de mim; me acariciei por um tempo, senti minha pele roçando em mim mesma, era gostoso se dar o prazer do próprio toque, eu me amava, me entendia, como jamais alguém haveria de fazer! Inclinei-me para frente, sem perder o equilíbrio - ainda dava para tirar proveito da situação. Pulei, antes tendo o cuidado inútil de tomar impulso com as mãos no chão; eu estava caindo, mas me senti flutuando... Não sei quanto tempo durou a queda, sequer estimo isso, nunca fui boa com cronometragem; sei só que foi gostoso, aliás, eu nem me lembrei de que estava prestes a morrer. A brisa era tão forte que chegava a quase abrir minhas pálpebras, mas não permiti, pois aquilo seria loucura até para mim. O agudo do vento era ainda mais forte e senti o mesmo retirando os grãos de terra que ainda restavam em minhas mãos; daí pensei que a melhor coisa que já nasceu da terra foi gente e então tudo escureceu...