sábado, 20 de abril de 2013

WC

E lá estava eu, mais um dia, mais um... Naquela morbidez, estático, quase crucificado na placa. Tudo o que eu conhecia do mundo estava a minha frente. Era assim, sempre 180 graus. Hora ou outra, quando abriam a porta, dava para ver o mundo além do meu corredor; ficava de frente para o espelho retangular do banheiro e por reflexo enxergava minha trás composta de um extenso mictório. Mas não era pelo banheiro que meus olhos se atraiam... Minha felicidade (e frustração) era olhar minha frente, quando a porta estava fechada. Não sei se estava sempre a cochilar, mas sua face inexpressiva me desanimava. Não dava para discernir seu olhar, eu mal o enxergava. Seu vestido de triangulo me atormentava - Que curvas haveriam ali???!!! Era impossível saber! - O que ela pensava de mim? Teria razão de ser sempre tão discreta? Esse ar misterioso, seria medo ou jeito? Todas aquelas perguntas me assombravam dia e noite, mesmo no vai-e-vem da porta. Ela era tão semelhante a mim, tão ''eu''... E mesmo sem nunca ter lhe tocado ou trocado meia palavra, tinha convicção disso. Tentei, como todos os dias passados, me sair dali, daquela placa de mármore gélida, que me guardava e oprimia. Eu queria sair!! "Alguém me tira daqui!!!" gritei até sufocar, mas nem as madames, nem os rapazes me atendiam; sequer as crianças - essas eram agora, inteligentes demais para me encarar na dúvida de ser a porta correta a entrar. Eu lutava para me desgrudar daquilo, aproveitava o impulso de quando a porta abria para fazer algum tipo de pressão sob a placa e me libertar, mas era em vão, aquele troço tinha com exatidão as minhas medidas. Resolvi gritar a fim de que ela me ouvisse, mas nenhuma reação obtive. Eu estava obcecado por aquela figura singela, eu queria enxergar em meio a neblina, queria desvenda-la... Ah se ela deixasse, ah se minha placa também o fizesse!! Com os dias, murchei, desanimei, minha face também adquiriu inexpressividade, eu morria a cada dia sem tê-la em meus braços. Num estalo constatei: ela também havia amado outro, talvez meu antecessor... Seria ela também, daqui algum tempo, trocada? Já se via suas falhas nos contornos e seu mármore quebrado nas quinas. Não suportaria tamanha perda, eu findaria.
- O boneco se pôs a chorar... E assim acontecia o amor no estreito espaço entre duas portas.

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